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Trecho retirado do livro Rememórias Dois de Carmo Bernardes (APUD BORTONI-RICARDO, 2006)

"Entrei numa lida muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender nadinha do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava. Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado e meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversava por trinta, tinha ladineza e entendimento. Na rua e na escola _ nada; era completamente afrásico. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um palavreado grego de tudo.
Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei e perdi a influência de ir à escola, porque diante dos escritos que o mestre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quarta-feira de marca maior. Alívio bom era quando chegava em casa.
Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos livros e mais diferente ainda da gente de minha parentalha. Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas não quiseram aprender a minha. Faziam era caçoar. Nestes casos, por exemplo:eu falava "sungar", os meninos da rua falavam "arribar", e mestre Frederico dizia "erguer". Em tudo o mais era um angu-de-caroço que avemaria.
Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relógio lá de casa estava "azangado". Aí o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro da testa e derreou a cabeça e ficou muito tempo assim de esguelha fisgado em mim, depois estatalou:
_O relógio está o quê?!!
Ah, meu Deus...Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha panhado bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e embaraçou-se todo também:
_Ele está dizendo que o relógio da casa dele "escanchelou"!
Mestre Frederico derreou a cabeça para o outro lado e tornou a estralar:
_ O quê!!!
Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente, ínterim em que a risadagem já ia entornando na sala toda.
_Silên...cio!...
E, peculiamente, a palmatória surrou miúdo no tampo da mesa.
Em tudo o mais era nesse teor. Era _ não: é. Vivi até hoje empenhado na peleja mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e não sou capaz. Em estando muito prevenido é que às vezes dou conta de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desastrosas silabadas (...)
Só desaçaimado de tudo quanto é fiscalização de regras e formas, sou capaz de ajeitar uma prosa sofrível. Aí vou desalojando de dentro de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue, olvido o mundo que me cerca e me engolfo numa lembrança qualquer mal apagada e, assim, às vezes arrumo uma escrita que não enfada muito."

Memorial



Pensar na minha história como leitora é viajar pelas mais doces recordações de infância, época que foi marcada pelas brincadeiras de roda, jogos de rua, cozinhadinha, pega-pega, amarelinha e tantas outras. Era comum na vizinhança que as crianças brincassem na rua, mas, à noite, todas se recolhiam em casa e era nessa hora que me apegava às leituras.
Nos primeiros anos de escola, lia bastante a cartilha Caminho Suave, aquela de capa azul, mas o que mais me marcou nesse período foi uma coleção de livros infantis que ganhei de minha mãe. Era o meu tesouro. Como eram fantásticas aquelas capas com gravuras que ficavam diferentes quando mudávamos a posição da capa, pareciam mágicas. Mas, como tesouros ficam quase sempre guardados, lia alguns dos livros e os guardava numa caixa para que ninguém mexesse. Então, recorria a outras leituras como a de um livro que continha 365 histórias, uma para cada dia do ano. Como me prendiam aquelas ilustrações dos textos que caíam na época do ano do outono e do inverno, folhas secas caindo, neve. Nunca consegui ler uma história por dia, queria ler todas de uma vez. Também gostava das histórias bíblicas ilustradas, mas essas eram de uma outra coleção, tesouro de uma tia que morava conosco.

Nos tempos da 5ª e 6ª séries, os professores de português trabalhavam com uma ficha literária e sugeriam a leitura de livros como O Escaravelho do diabo, Um cadáver ouve rádio, O outro lado da ilha, de José Maviel Monteiro, e outros de uma série chamada Vaga-lume. Na 8ª série, já líamos Machado de Assis, A mão e a luva, José de Alencar, O guarani, mas tudo com uma função avaliativa.
Foi na graduação que redescobri o prazer de ler, principalmente, quando estudamos o Realismo e o Modernismo, aí vi A mão e a luva de outra forma e mergulhei nas leituras de Madame Bovary de Gustave Flaubert, Vidas Secas, As doze cores do vermelho e de muitos outros. A partir daí, relacionava as pessoas aos personagens e vice-versa e observava que suas características e comportamentos eram semelhantes. Tive uma vontade enorme de estudar Psicologia, o que mais tarde fiz, talvez pela influência de um ótimo professor de Psicologia do tempo do Magistério.

Hoje, minhas leituras são bem ecléticas, possivelmente, porque preciso pesquisar bastante neste curso de formação de tutoria, entretanto tenho sempre na cabeceira um livro literário do qual retiro personagens para o mundo real ou para o qual levo os personagens da vida real e nesse jogo do literário e do real vou construindo a minha história de leitora.

2 comentários:

sadrianna disse...

Lindo!!!!!Parabéns!!!!Dá trabalho tirar de nossas memórias as recordações,mas depois de concluído
é tão gratificante,não é?

Dioney disse...

Como seu texto se parece com você, Keyla!!! Simples, educado e atento, nos prende do início ao fim, e o fim deixa um gostinho de quero mais. Linda trajetória leitora você teve. Vou me inspirar nela para educar meus futuros filhos, com magia e ternura provocada pelos livros que você citou.
Um grande abraço.
Prof. Dioney