O filme retrata o Brasil do século XVI, época em que os portugueses mandavam virgens para que se casassem com os colonizadores, drama da personagem central do filme. Além dos aspectos históricos, culturais e sociais, como o papel da mulher e a formação do povo brasileiro, pode-se perceber a trajetória da língua portuguesa e a origem do português falado no Brasil, como bem escreve a cursista Régia Abreu: " É importante ressaltar que o momento histórico que o Brasil se encontrava era muito tenso, cada camada da sociedade com suas preocupações: a Igreja tentando catequizar os índios , os bandeirantes desbravando por caminhos antes não conquistados e os portugueses querendo ficar ricos. Naquela época, assim como hoje, as formas lingüísticas de prestígio funcionavam como instrumento político emancipador. Na língua falada em 1570 não existiam só variações da mesma língua, mas também línguas diferentes. No filme, convivem, lado a lado, formas muito antigas e formas novas que prenunciam o futuro do idioma. Necessidades sociais, relações de poder, influência estrangeira, anatomia humana e moda estavam a serviço da língua para dispor formas variantes de se dizer a mesma coisa. Daí surge a explicação de que as línguas mudam porque variam. As línguas mudam porque, em todo momento de sua história elas apresentam variações, isto é, ocorrência de duas ou mais maneiras de expressar o mesmo conteúdo. As línguas mudam porque são faladas por seres humanos inseridos em sociedades heterogêneas, sociedades divididas em classes sociais, em grupos e poder, onde existem relaçoes de dominantes sobre dominados, onde os meios de acesso ao prestígio social são distribuídos desigualmente. É possível observar traços graduais e descontínuos nas línguas faladas pelas personagens, não existe uma fronteira rígida que separe os falares das comunidades. Infelizmente, muitos estudiosos não conseguem aceitar as variações e as mudanças lingüísticas, assim como nós, meros professores, não aceitamos os "possíveis erros" de nossos educandos. É como se o que mais importasse fosse quem está falando e não o que se está falando. É importante também chamar a atenção para dados do filme que são esquecidos por nós: a língua que foi trazida para o Brasil não foi o português homogêneo, invariável. As pessoas que se instalaram aqui provinham de áreas geográficas diferentes, de classes sociais bem distintas, falavam diversas variedades lingüísticas.
Temos de levar em conta a mistura de raças e a influência dos negros e dos índios na formação de nossa sociedade. Uma coisa que devemos evitar sempre ao tratar de variação e mudança lingüística é o preconceito. Não existe uma língua no mundo que seja homogênea, sem variação. Então, por que a língua do território brasileiro tem de ser?"
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Trecho retirado do livro Rememórias Dois de Carmo Bernardes (APUD BORTONI-RICARDO, 2006)
"Entrei numa lida muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender nadinha do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava. Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado e meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversava por trinta, tinha ladineza e entendimento. Na rua e na escola _ nada; era completamente afrásico. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um palavreado grego de tudo.
Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei e perdi a influência de ir à escola, porque diante dos escritos que o mestre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quarta-feira de marca maior. Alívio bom era quando chegava em casa.
Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos livros e mais diferente ainda da gente de minha parentalha. Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas não quiseram aprender a minha. Faziam era caçoar. Nestes casos, por exemplo:eu falava "sungar", os meninos da rua falavam "arribar", e mestre Frederico dizia "erguer". Em tudo o mais era um angu-de-caroço que avemaria.
Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relógio lá de casa estava "azangado". Aí o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro da testa e derreou a cabeça e ficou muito tempo assim de esguelha fisgado em mim, depois estatalou:
_O relógio está o quê?!!
Ah, meu Deus...Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha panhado bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e embaraçou-se todo também:
_Ele está dizendo que o relógio da casa dele "escanchelou"!
Mestre Frederico derreou a cabeça para o outro lado e tornou a estralar:
_ O quê!!!
Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente, ínterim em que a risadagem já ia entornando na sala toda.
_Silên...cio!...
E, peculiamente, a palmatória surrou miúdo no tampo da mesa.
Em tudo o mais era nesse teor. Era _ não: é. Vivi até hoje empenhado na peleja mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e não sou capaz. Em estando muito prevenido é que às vezes dou conta de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desastrosas silabadas (...)
Só desaçaimado de tudo quanto é fiscalização de regras e formas, sou capaz de ajeitar uma prosa sofrível. Aí vou desalojando de dentro de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue, olvido o mundo que me cerca e me engolfo numa lembrança qualquer mal apagada e, assim, às vezes arrumo uma escrita que não enfada muito."
"Entrei numa lida muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender nadinha do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava. Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado e meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversava por trinta, tinha ladineza e entendimento. Na rua e na escola _ nada; era completamente afrásico. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um palavreado grego de tudo.
Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei e perdi a influência de ir à escola, porque diante dos escritos que o mestre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quarta-feira de marca maior. Alívio bom era quando chegava em casa.
Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos livros e mais diferente ainda da gente de minha parentalha. Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas não quiseram aprender a minha. Faziam era caçoar. Nestes casos, por exemplo:eu falava "sungar", os meninos da rua falavam "arribar", e mestre Frederico dizia "erguer". Em tudo o mais era um angu-de-caroço que avemaria.
Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relógio lá de casa estava "azangado". Aí o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro da testa e derreou a cabeça e ficou muito tempo assim de esguelha fisgado em mim, depois estatalou:
_O relógio está o quê?!!
Ah, meu Deus...Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha panhado bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e embaraçou-se todo também:
_Ele está dizendo que o relógio da casa dele "escanchelou"!
Mestre Frederico derreou a cabeça para o outro lado e tornou a estralar:
_ O quê!!!
Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente, ínterim em que a risadagem já ia entornando na sala toda.
_Silên...cio!...
E, peculiamente, a palmatória surrou miúdo no tampo da mesa.
Em tudo o mais era nesse teor. Era _ não: é. Vivi até hoje empenhado na peleja mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e não sou capaz. Em estando muito prevenido é que às vezes dou conta de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desastrosas silabadas (...)
Só desaçaimado de tudo quanto é fiscalização de regras e formas, sou capaz de ajeitar uma prosa sofrível. Aí vou desalojando de dentro de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue, olvido o mundo que me cerca e me engolfo numa lembrança qualquer mal apagada e, assim, às vezes arrumo uma escrita que não enfada muito."
DESMUNDO
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